Os donos temporais do mundo: breve reflexão sobre a lógica das elites econômicas brasileiras
Em meio às dificuldades da economia brasileira, dois estudos
recentemente divulgados ilustram como o poder econômico está concentrado
em pouquíssimas pessoas que, nos tempos que correm, controlam os
destinos do mundo, solapando a ação do Estado e obstruindo qualquer
possibilidade de controle social sobre os rumos da economia. Informações
que também ajudam a confirmar características das elites nos países
subdesenvolvidos, com passado de colonização e presente de dependência,
como o Brasil.
A primeira pesquisa mostra que, no Brasil,
corporações estrangeiras adquiriram 167 empresas de capital nacional no
primeiro semestre de 2012, a maior liquidação de empresas privadas
brasileiras num único semestre de toda a história do país, batendo o
recorde do primeiro semestre de 2011 (94 empresas desnacionalizadas).
São dados da última Pesquisa de Fusões e Aquisições da consultoria KPMG.
A maior parte (71 empresas nacionais) foi adquirida por transnacionais
com sede nos EUA, seguido por corporações da França (13 empresas
nacionais adquiridas), da Inglaterra (12 empresas) e da Alemanha (11
empresas), entre outras. O capital estrangeiro adquiriu controle de
empresas nos mais diversos setores da economia: de serviços para
empresas (21 desnacionalizações) e tecnologia da informação (17),
passando por produtos químicos e farmacêuticos (17), alimentos, bebidas e
fumo (9), telecomunicações e mídia (8), mineração (7), entre outros.
Desde 2004, passaram a ser controladas de fora do país nada menos que
1.167 empresas que antes eram nacionais, sendo 86,5% destas (1.009
empresas) desnacionalizadas após 2006, ano em que o Governo Federal
passou a facilitar o ingresso no País do chamado “investimento direto
estrangeiro”, eufemismo para a compra de empresas nacionais por
transnacionais.
A segunda e mais impressionante informação
evidencia o que fazem os antigos empresários nacionais com os recursos
que recebem por desnacionalizarem suas empresas, juntamente com os
demais membros da seleta elite dos milionários do planeta. O Brasil é o
quarto país com maior volume de recursos depositados no exterior. Em
2010, nada menos do que US$ 520 bilhões (cerca de R$ 1,05 trilhão)
estavam depositados pelos mais ricos do país em paraísos fiscais. O
valor é equivalente a quase 30% do Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro registrado em 2010, de R$ 3,7 trilhões, e muito superior à
dívida externa do Brasil, que está em US$ 303 bilhões.
São
dados do relatório The Price of offshore revisited (O preço do dinheiro
em paraísos fiscais revisitado, em tradução livre) da ONG inglesa Tax
Justice Network (Rede de Justiça Tributária, em tradução livre),
elaborado pelo economista James Henry. Trata-se do mais completo
mapeamento dos recursos financeiros investidos em paraísos fiscais, como
a Suíça, as Ilhas Cayman e o Uruguai, e não declarados às autoridades
nacionais, como a Receita Federal, no Brasil. A fortuna dos ricos
brasileiros no exterior só perde para a dos chineses (US$ 1,1 tri), dos
russos (US$ 798 bi) e dos coreanos (US$ 779 bi). No total, o estudo
estima em pelo menos US$ 21 trilhões o total de recursos expatriados no
mundo, valor equivalente ao PIB somado dos EUA e do Japão, nas mãos de
10 milhões de investidores. Deste montante, cerca de US$ 9,8 trilhões
pertencem a apenas 91 mil pessoas, ou 0,001% da população mundial.
Até o fim de 2010, os 50 maiores bancos privados do mundo
administravam US$ 12,1 trilhões em ativos investidos além das fronteiras
dos países de origem dos recursos. O volume era de US$ 5,4 trilhões em
2005, um crescimento anual da ordem de 16% nesse período. Os bancos que
detêm o maior volume de recursos desta natureza são os suíços UBS e
Credit Suisse e o estadunidense Goldman Sachs. “Esses bancos agem,
principalmente, abordando as elites de países exportadores de riquezas
minerais (petróleo, minério de ferro, pedras preciosas) – inclusive os
africanos – para que enviem seus recursos ao exterior”, afirma o diretor
da Tax Justice Network John Christensen. Na América Latina, além do
Brasil, México (US$ 417 bilhões), Venezuela (US$ 406 bilhões) e
Argentina (US$ 399 bilhões) estão entre os 20 países cujas elites mais
enviaram dinheiro a paraísos fiscais ao logo das últimas três décadas.
O autor do estudo ressalta que a desigualdade no mundo é muito maior do
que a estimada nos trabalhos já realizados sobre o tema, uma vez que
estes não levam em conta os valores expatriados pelos super-ricos do
mundo, considerando apenas a renda das pessoas, basicamente decorrente
de salários. Assim, a desigualdade de riqueza aprofunda absurdamente a
desigualdade de renda.
Uma economia crescentemente
desnacionalizada, com os centros de decisão das empresas deslocados para
o exterior, num contexto de extrema concentração de riqueza nas mãos de
um reduzido número de pessoas, com fortunas familiares que superam em
muito o PIB da maioria dos países do planeta: eis a correlação de forças
do mundo em que vivemos.
Particularmente, a elite brasileira,
completamente desenraizada em seu próprio país, é incapaz de se
reconhecer na sofrida história latino-americana e por isso projeta suas
raízes nos países do centro do sistema capitalista, de onde importa
costumes, valores e modas estéticas e intelectuais. O desenraizamento da
elite brasileira determina seu padrão de consumo. E, com conseqüências
ainda mais dramáticas, influencia o espelhamento da classe trabalhadora
nos padrões globais de consumo e na forma de vida defendida pela elite
brasileira. O desejo de consumir como a elite consome passa a
condicionar o horizonte político de ação dos trabalhadores, estreitando
suas lutas emancipatórias e reduzindo-as aos limites estreitos do
corporativismo sindical, cuja direção torna-se presa fácil para a coopta
ção pelos interesses empresariais. O estudo verificou que a maior parte
dos países que possuem dívidas externas é, na verdade, credor, quando
se computam os recursos depositados em paraísos fiscais. O problema é
que esta riqueza, sob controle das elites locais, está expatriada,
enquanto a dívida é paga por todos os cidadãos. Como escreveu Simone
Weil, “o dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando,
substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar (...). Nada mais
claro e simples que uma cifra” (A condição operária e outros estudos
sobre a opressão, 1943).
Diante de tamanho desafio, é alentador
recorrer à força utópica de Carlos Drummond de Andrade: “Tantos pisam
este chão que ele talvez / um dia se humanize (...) / Nossos donos
temporais ainda não devassaram / o claro estoque de manhãs / que cada um
traz no sangue, no vento” (“Contemplação no banco”, Claro Enigma,
1951).
GT Conjuntura, 06 de agosto de 2012.
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