Porque a paz da Colômbia é a paz para toda Nossa América
Se tantas bandeiras, sonhos, projetos e anseios podem caber na palavra “paz”, essa palavra tem de ser reinventada entre todos.
Ato Político de Abertura do Fórum pela Paz na Colômbia. Fotos: Rafael Daguerre Por Juliana Mesomo*
Não foi por acaso que o GEAC (Grupo de Estudos em Antropologia Crítica)1
se somou e esteve envolvido desde o começo nos esforços para organizar o
Fórum pela Paz na Colômbia. De fato, alguns dos membros participaram a
fundo na gestação deste grande encontro que se realizou em Porto Alegre
nos dias 24, 25 e 26 de maio – trazendo delegações e representantes dos
mais diversos movimentos sociais, partidos e entidades políticas de
quase todos os países latinoamericanos (além de uma deputada do país
Basco) para discutir os caminhos do processo de paz na Colômbia. A
participação de companheiros colombianos no GEAC sempre foi uma
constante, desde a fundação do grupo. O contato entre relatos de
realidades nacionais – incluímos aí Brasil, Argentina, Uruguai e
Colômbia – tão parecidas e, ao mesmo tempo, tão diferentes nos levava
frequentemente ao exercício de pensar em que pontos essas experiências
eram compartilhadas e em que pontos não. Como coloca o antropólogo Homi
Bhabha, trata-se de encarar o problema do nós-enquanto-outros e dos outros-enquanto-nós,
antes de absolutizar a alteridade como algo externo e distante. Logo,
que uma brasileira escreva sobre o processo colombiano pode ser
produtivo para realçar alguns aspectos importantes sem reforçar a
“diferença nacional” e o mito de que cada um deve falar somente sobre
seu respectivo “quintal” (seu próprio país).
Voltando no tempo, nos colocávamos algumas questões, por exemplo: Será que a militarização na
Colômbia e a perseguição e eliminação da oposição política ao regime se
parece com o que passamos aqui com as ditaduras dos anos 60, 70 e 80? O
tratamento de questões sociais como questão policial, por acaso, não se
parece com a forma como nossa polícia trata os grupos mais pauperizados
aqui no Brasil, criminalizando-os? Será que só a Colômbia, em função do
conflito armado, vive um “permanente estado de exceção” ou ele vige em
todos os nossos países e não terminou com o fim das ditaduras
cívico-militares? Se sim, o que significa o “estado de exceção” nesta
região que chamamos América Latina? Não é verdade que a Colômbia (entre
outros países) ainda funciona como uma espécie de “laboratório” de
políticas neoliberais e de práticas de militarização que são
“exportadas” para outros Estados da região?
Se sim, concluímos, dividimos muitas
características como nações, mas fundamentalmente como região que sofreu
com os mesmos projetos coloniais e imperialistas, com a instauração de
regimes ditatoriais e reformas neoliberais que compartilhavam uma mesma
matriz… o que, então, nos diferencia? Como explicar que a Colômbia viva
tal realidade, enquanto aparentemente outros países dão passos
importantes na garantia por soberania, democracia e mudanças nas
estruturas econômicas e sociais? O que significa saber, por exemplo, que
jovens colombianos com a mesma idade de muitos de nós, são hoje
refugiados políticos e não podem exercer atividades políticas no seu
próprio país? Que o Brasil abriga hoje mais de 500 destes refugiados,
que no total chegam a milhares? Que a Colômbia é o país mais perigoso do
mundo para exercer atividade sindical, porque seus líderes são
assassinados frequentemente, o que se traduz em uma baixíssima taxa de
trabalhadores sindicalizados? Que a Colômbia é o país que mais manda
militares para serem treinados na Escola das Américas? Que a manutenção
da guerra sustenta o terceiro país mais desigual do mundo, com um modelo
econômico extremamente excludente e violento, e sustenta igualmente a
expulsão sistemática de camponeses e indígenas de suas terras para a
realização de grandes projetos de mineração e agricultura extensiva para
exportação, totalizando mais de 5 milhões de deslocados internos? Que o
narco-paramilitarismo que toma a frente dessas expulsões tem
representação importante no próprio governo (de Álvaro Uribe e, agora de
Manuel Santos), e em diferentes instâncias do poder estatal, locais e
regionais, executivas e parlamentares? Como podemos imaginar,
comparativamente com o Brasil ao menos, que nos anos 80 tenham sido
assassinados em torno de cinco mil integrantes de um partido de oposição
(poderíamos dizer de esquerda, frente aos partidos liberais e
conservador) chamado União Patriótica, em função de um alegado
“fracasso” nas negociações de paz com as guerrilhas insurgentes que
acabou por justificar um verdadeiro massacre dessa alternativa política
que se construía? Imaginemos, por fim, que boa parte dos discursos de
oposição sofrem uma neutralização violenta através de um “dispositivo”
específico de um Estado que declarou guerra à insurgência armada:
acusá-los de ligação com a guerrilha, o que permite que sejam cassados
os direitos da pessoa a concorrer a cargos políticos, como aconteceu com
a Senadora Piedad Córdoba que está envolvida com as recentes
negociações de paz.
Embora sejam bastante evidentes alguns
contrastes no que se refere à força e a densidade da violência, tanto
dos grupos paramilitares quanto do Estado na Colômbia, aos poucos fomos
abandonando aquela sensação de confusão inicial conduzida pela pergunta
muito equivocada que afasta totalmente o problema de nós: mas que tipo
de tragédia horrível deve ter se abatido sobre esse país? Para nós, a
explicação não está nem no próprio conflito nem na própria Colômbia
– e o esforço de construção de um Fórum de solidariedade
latinoamericana em Porto Alegre também parte desse princípio. A atitude
de isolar o Outro, de buscar uma explicação encerrada na sua própria história ou na sua própria cultura (como
se ambos existissem) resultaria, na verdade, em discutir o conflito nos
seus próprios termos – por exemplo, de que uma violência inicial
desencadeou outras numa cadeia infinita, ou de que a dinâmica “nacional”
teria traços “culturais” ou “políticos” que levaram ao recurso das
armas, como gostaria um bom culturalista. E, assim, deixaríamos de
procurar as condições da sua possibilidade e de sua reprodução – estas
sim, condições compartilhadas por todos os países da região que se
materializam de diferentes formas em cada Estado-nação. Muito se falou
no Fórum – especialmente David Florez, porta-voz da Marcha Patriótica2
– sobre “para quê” serve o conflito hoje: para manter um sistema
político excludente das maiorias, um estado mínimo para os direitos
sociais, para levar adiante a implantação de um modelo extrativista e
agroexportador, para justificar e fortalecer a presença militar dos
Estados Unidos, para manter os tratados de livre-comércio. A explicação
para a existência e a continuidade do conflito não está, portanto, numa
“origem histórica”, remota e “autenticamente” colombiana, que explicaria
o peso de seu arraigo nas estruturas sociais, econômicas, políticas e
culturais do país. Ela está, sim, no seu contexto de produção e reprodução constante. Que os efeitos
do conflito sejam também, coincidentemente, suas causas (falta de
participação política, desigualdade social e militarização do Estado)
não deve espantar. É por isso que no Fórum, movimentos sociais,
partidos, representantes de governos e demais participantes, propuseram
atacar as causas do conflito para alcançar uma paz verdadeira,
das gentes e não das oligarquias, da vida e não dos cemitérios, da
democracia e não do silêncio. “Paz com justiça social, soberania e
democracia”, como diz a consigna do Fórum.
Mas e, afinal, estas causas/efeitos/condições de (re)produção do
conflito colombiano não se mostram presentes, de alguma forma, no Brasil
e nos outros países da América Latina? Ou, pelo menos, estes elementos
estavam mais explicitamente atuantes há alguns anos e começam agora, com
muito esforço em alguns países, a serem combatidos e substituídos por
outras matrizes de produção das realidades nacionais. Muito
provavelmente, a resposta é sim, eles são compartilhados, posto que
esses elementos formam um modelo de Estado-nação que, sem dúvidas, ainda
paira sobre a região e ainda não foi completamente extirpado do “código
genético” de formação de nossos estados modernos/coloniais. Um código
baseado na violência, na exploração, no racismo e na exclusão política.
A questão dos problemas das nações
latinoamericanas, assim, tem muito a ver com o fato de a ideologia
burguesa do individualismo – com seus desdobramentos como o atomismo –
ser um tremendo equívoco para pensar e atuar nessas terras. A opção por
isolar-se não pode levar a boas análises, nem grandes resultados.
Existem processos históricos que são compartilhados, logo existem
mudanças e rupturas desejadas que não conseguiremos levar adiante
sozinhos. O que um não consegue, logo dois conseguirão. O que dois não
conseguem, logo conseguirão três, quatro, cem, milhares, milhões. Assim
funciona também para os países de Nossa América. A paz que sonham as
colombianas e colombianos é uma que só acontecerá com o apoio e o aporte
de todas as pessoas, coletivos e forças interessadas na democratização
radical dos processos políticos na região. Se tantas bandeiras, sonhos,
projetos e anseios podem caber na palavra “paz”, essa palavra tem de ser
reinventada entre todos. “Inventemos ou erremos”, disse Simon
Rodriguez, mestre de Simon Bolívar, numa frase pichada em algum muro de
Caracas. E isso já vem acontecendo: hoje paz na América Latina significa
justiça para os povos originários, combate ao racismo e reparação
histórica ao despojo e exploração das populações afroamericanas, direito
à identidade e à alteridade, significa pensar-se a partir desta
alteridade (de gênero, de raça, de classe) despojada pelo projeto
moderno-colonial, significa direitos iguais independente de gênero e
opção sexual, significa que a mulher tome a soberania sobre seu corpo e
sua vida, significa acesso à terra e o fim das desigualdades sociais e
da exploração vil do trabalho. A paz na América Latina é
anti-imperialista, anti-colonial (ou descolonial) e anti-neoliberal.
Sobre isso se disse algo muito importante no Fórum: não pode haver paz na América Latina se não há paz na Colômbia.
Assim como não haverá justiça pelas vidas cobradas nos crimes de Estado
na Argentina e no Uruguai, se não houver punição aos responsáveis no
Brasil, e vice-versa – vide a articulação entre ditaduras durante o
Plano Condor. Os trabalhadores não estarão protegidos enquanto não se
estenderem direitos aos trabalhadores de fronteira e migrantes. Não se
pode excluir da demarcação de terras indígenas os guaranis que vem do
Paraguai – já que se não brasileiros, tampouco são paraguaios.
Demasiado
utópico o desejo de uma paz verdadeira e compartilhada? Talvez, mas não
deve ser por acaso que muitos teóricos na América Latina diziam que a
integração regional e o caminho ao socialismo são, para nós, uma
“necessidade existencial”. Se até o governo colombiano reconhece o
impasse do conflito e a realidade profundamente desigual do país, é
nosso o trabalho de imaginar o que ainda não existe, nem cá nem lá.
Parafraseando o filósofo Slavoj Zizek, esta inexistência que, sem
embargo, nos move: a verdadeira paz com justiça social, democracia e
soberania para todos os povos de Nossa América. Mais que imaginar, criar
e construir. Como disse Paulo Freire: “criar o que não existe ainda
deve ser a pretensão de todo sujeito que está vivo”.
* Juliana Mesomo é mestranda no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS e membro do Grupo de
Estudos em Antropologia Crítica.
Notas:
2. A Marcha Patriótica é um movimento
social e político que reúne diversas entidades, organizações, partidos,
grupos e pessoas e pretende inserir esses grupos da sociedade civil no
debate sobre as negociações de paz, que se dão atualmente entre governo e
FARC-EP em Havana-Cuba. http://www.marchapatriotica.org
Agenda Colômbia-Brasil
A Solidariedade é dos Povos!!!
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